segunda-feira, 6 de julho de 2015

Parede: Casa

Um dia como sempre que nunca mais será o mesmo. Um dia como nunca. Uma noite. Vi a tua sombra crescer pela parede dentro, até que os meus olhos ficaram parede. Caí, mas como parede fiquei em pé. Aí vi as máquinas de escrever. Faziam todas o mesmo som. Cresciam e não mais desistiam de ser máquinas e de ter som.
Passaram uns tempos e dei uma espreitadela nos telescópios e nos microscópios, o que está tão longe e o que está demasiado perto para ver. As distâncias sempre me intrigaram, mas nunca lhes senti o toque. Ficavam tempos a olhar, admiravam as belezas do inesperado e do desconhecido. Depois, pareciam chegar a algo, único, antes de perceber que o melhor era dedicar a vida à teoria. E escreviam na máquina de escrever, sons todos iguais, mas estes pensavam ser diferentes.
Assim cheguei ao pensamento. Ele olhava para mim com cara de caso. O caso da parede. Humm, murmurava. O seu som parecia incontrolável, incomparável, poderoso. Mas depois falava-me de solidez, e eu estava nem aí. Sólido sabia ser eu, parede de betão como dizia o senhor engenheiro, aquele que me criou. Nunca soube muito sobre ele. Estava cá antes da minha génese e quando tinha idade de criança disseram-lhe para ler um livro. Nunca se esqueceu da mensagem, mas foi pregar para outras terras no dia em que me ia contar tudo, fiquei sem saber.
Por aqui cheguei à parede. Por não saber nada, ou por saber demasiado. Simplesmente, a noite cai. De dia há a claridade e à noite vemos tudo.
(o céu está sempre limpo por cima das nuvens!)
Gostava de dizer algo que tu também já sabes. A parede sou eu e também és tu. Fica o nosso pequeno segredo.

(à lei do espaço, à lei do tempo, à lei do momento)

- E o que aconteceu à parede, Orlando?

- Um dia deixei de lutar, aproximei-me dela e dei-lhe um abraço. Com as minha mãos percebi que ela podia ter a forma que eu quisesse.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Dança

O salão despiu-se para a magia acontecer

só quando atinge o incontrolável é que tu percebes que não podes mais controlar

sabe-se lá. A dor na cabeça

a dor na ponta dos dedos

sabe-se lá.

Ouves, dizem-te, nos momentos de silêncio, quando estás em harmonia, vês o que não consegues ver nos dias todos, no correr. Como se descobrisses tudo o resto, o essencial. Olhas para a mão. É a mão e faz parte do resto essencial. Enquanto mordes os calcanhares, ultrapassas e és ultrapassado. A luz não escorece mais, também não é preciso.

Como sabes eu não sei mentir e nunca serei imune ao nosso sabor, às tuas curvas suaves de raiva, e ao dançar,
quando danças, quando te danço.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

domingo, 18 de agosto de 2013

No Jardim



O mocho agita o seu olhar
reflexo do candeeiro
que ora se esconde
ora se encanta
no mar de carvalhos densos
de outros tempos.

Um casal
encontra-se absorvido
no banco castanho
do denso jardim.
Falam de tudo
e não sabe a nada.
Eles agarram as mãos
tentam ficar, tentam sorrir.
Esforçam-se para lembrar
de tudo para que lutaram:
o tempo de chegada tão devagar
o tempo de ida tão depressa.

Ele ajoelha-se e pede-a em casamento.
Ela sorri,
diz para ele parar de ser idiota
e para se levantar.
Ele levanta-se
volta a sentar-se no banco do jardim
e voltam a dar as mãos.
Sorriem.

O mocho está absorvido
nas cores da luz do seu reflexo
e os carvalhos
apesar de parecerem derrotados
estão parados no tempo
e, por isso, sobrevivem.

Está brilhante a luz da lua esta noite,
diz ela a ele.
E olham para cima
para um astro
luz-reflexo de outro astro.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Miragens



Chamem-me Ismael. Há alguns anos, quantos ao certo, não importa, com pouco ou nenhum dinheiro na bolsa, e sem nada de especial que me interessasse em terra, veio-me à ideia meter-me num navio e ver a parte aquática do mundo. É uma maneira que eu tenho de afugentar a melancolia e regularizar a circulação. Sempre que na minha boca se desenha um esgar carrancudo; sempre que me vai na alma um Novembro húmido e cinzento, sempre que dou comigo deter-me involuntariamente em frente das agências funerárias ou a engrossar o séquito de todos os funerais com que me deparo; e, especialmente, sempre que me sinto invadido por um estado de espírito de tal maneira mórbido, que só os sólidos princípios morais me impedem de descer à rua com a ideia deliberada de arrancar metodicamente os chapéus a todos os transeuntes, nessa altura, dou-me conta que está na hora de me fazer ao mar, quanto antes. É o meu estratagema para evitar o suicídio. Catão lança-se sobre a espada com um floreado filosófico; eu, calmamente, embarco. Nada há de surpreendente nisto. Embora não se dêem conta, tal como eu, quase todos os homens acalentam, mais tarde ou mais cedo, este desejo de mar.

Herman Melville,  Moby Dick
Tradução de Lúcia do Carmo Cabrita Harris

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Da vida



Da vida de outrora não resta nada, apenas o pó. O pó nos livros, nos quadros, nas estantes. O pó em mim e em ti, carnificina. Como foste minha em tempos fúnebres, na época dos estímulos, do sangue e da alegria. A pira fúnebre arde em ti e em mim, mas não inflama sem o nós, que de tão atroz, dá até uma pena que não é pequena, uma pena penosa para quem a carrega, uma rosa que se esfrega no rosto do caixão, de quem já partiu e foi engolido pelo chão. Sete palmos debaixo da terra e toda a ilusão ilustre da lama. Chove, e tu precisas de coragem. O chapéu-de-chuva é preto e a gravata sufoca a suposta inglória razão. Chove a potes, chovem potes e magotes, e caixas de pedras mortas de ti. Estão mortos mas não estão podres. Estão bem acondicionados nas caixas. Pernas e braços, fígados e baços, olhos de vida escassos. E eu abraço-te morta e beijo-te torta e a tua carne só a mim me conforta. O meu caixão fica a teu lado: torna tudo mais fácil e mais difícil tudo o resto: as pessoas, as viagens, o coma insensível e o estojo das faces.
As noites são sempre limpas por cima das nuvens e o voo da fénix lírica leva-me para lá num êxtase transitivo para lugar nenhum. O autocarro das três da manhã está vazio e eu viajo sozinho pela esquizofrenia vazia da estrada da morte. O condenado viaja acorrentado ao assento sem acento. O sustento dos tempos afigura-se negro morte e lava-me o rosto e o resto do que resta. A prisão mutante, transcendendo os corpos do não-lugar, e o rosto são um tiro no escuro, como se as veias fugissem do sangue. É hoje que amo o teu abraço morto, é hoje que te amo e cresço em ti. És a morte e toda a vida, uma futura, contingente e contida, sem luz e perdida. És muito menos do que aquilo que podias ser, és menos de metade da soma daquilo que poderias oferecer. Multiplicas, somas e acabas em zero. Daí as frases, o pó, o realismo absurdo. Como me mentes o tempo resvalado resvalando para mim. Cais para ti, porque és tu em mim, porque só sou em ti. És o mundo todo universal, o fenómeno de todos os fenómenos nas cordas de um violino lânguido e tácito. A música escorre de todas os cantos e perdes todos os encantos em quaisquer recantos. O negro das luzes ilude-te e pensas-te deusa. Talvez o sejas, talvez o sejas... Ou então não. A Fortuna tem disto. A música pode ter a alegria do ritmo e a tristeza do refrão. No fundo somos todos malucos. "Give me some pills and I'll take it" - Assim como assim, desculpas, desculpas. Mas as culpas são de todos os rostos dos transeuntes inocentes. Indecentes, presentes ou ausentes: são todos culpados.
A pesada tinta reescreve o futuro de todos e não poupa ninguém à condenação. A forca do olhar nos outros, a corda ao pescoço - pré-julgamento sem hipótese de recurso.
O tribunal está vazio, o júri sou eu e o juiz é um espelho.


                     - com MedFix$Coma

segunda-feira, 18 de março de 2013

Um bar no Bairro Alto

As luzes brilham no bar perdido
acolhendo pessoas encontradas.
Não olhes para mim, foge comigo
pois já viste com certeza
onde acaba a luz do mar
e sabes como se nada de volta.
Ou então não
como se pudesse saber.

Mais uma rodada?
Sim, vamos outra vez,
bebendo enquanto nos arde
o calor do coração.

Estou só alegre, estou só feliz.

- Já viste o fogo das paredes?
- São só luzes de néon.
(a música é antiga)
- Como sabes que é néon?
- Toca lá. Se te arder a ponta dos dedos
Eu estive certa.

(o elixir das duas horas
há magia atmosférica na arena
O corpo estende-se
para além dos corpos
O veneno é criado industrialmente
com a seiva da nossa própria árvore
A água límpida da nascente nunca cá chegou
O fumo dos entretantos
Onde há fumo há fogo...

Passam das três
e poucas são as sombras
que permanecem no bar iluminado.
Mas nós não sabemos isso
já não estamos lá.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Poema febril que pinga nos cantos de cada folha


A histeria acomoda-se
e fazes das entranhas do ser
duas ou três merdas que dizem o que és.

Dá-me tudo
ou conversas.
E experimentares?
ya, ya,
sentaste no passeio, à noite,
à espera do autocarro. Ouves:
«Vamos a caminho dos subúrbios
onde deus nunca passou»

Bandos de força esquizofrénica
entendem-se aos grunhos
e são civilizados.
A maneira deles é cruel,
mas vês bondade
e isso basta.

domingo, 11 de novembro de 2012

O Feitiço



As casas são de cetim inviolável,
as cores dos carros
engolem os traços
da tua blusa,
O sabor da carne desaparece
no calor do sol,
A vida envolve
o remoinho do vento.
A luz vê-se ao longe,
para lá da cidade,
no fundo do jardim.


*

O feitiço
é um silêncio fugaz,
é onde sentes o amor fluir
como se o sangue
fosse acabar nas veias.


*

(...e as pessoas procuram-se)
Fazem casas por cima de casas,
prédios ao lado de prédios.
As cidades transformam-se e transformam.
Um dia, quando nada existia,
e ela foi desflorada.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O Convite



«Está a chover», dizem
«lá fora», acrescentam.
Os gestos e as falácias:
os cortinados balançam
com os movimentos,
os restos nunca olham em frente.

Por aqui amigo, este é o cálamo.
Lábios, lábios e as tuas botas.
Corres para mim, de tão longe
que nem sabes onde estão as estrelas cadentes